segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O melhor presente


Desde que Madri foi vestida com quatro milhões de luzes ainda no início de dezembro que eu vinha buscando outro sentido para o natal, já que este ano estaria longe de casa e a energia é, sem dúvida, diferente.

Bolas de cristal, arranjos de flor e serpentinas, uma árvore de 30 metros na Puerta del Sol, um mercado com artefatos natalinos na Plaza Mayor e nada me convencia.

Até encontrar – desviando de um monte de sombrinhas de turistas no centro histórico da cidade – o que melhor simbolizaria o espírito de natal nessa minha jornada que hoje completa dois meses e meio.

O brilho da cidade vinha dos olhos de uma menina. Encantada com a bolha de sabão feita por um pedinte de rua, ela olhava tudo aquilo como se estivesse abrindo o embrulho mais bonito.

Sua mãe lhe deu uma moeda, ela colocou na caixinha do senhor e foi dividir a alegria com outras crianças no carrossel. Ela sorria.

Para o próximo ano e todos os outros que virão, desejo a você - leitor, amigo, pessoa querida - o melhor presente.





Navidad

Aqui, o natal também começa com a confraternização do dia 24, chamada de Nochebuena, só que se estende até o dia dos Reis Magos, em 6 de janeiro. As crianças assistem à cavalgada dos reis e, à noite, abrem os presentes.

Este ano, a abertura do Natal foi celebrada na Puerta del Sol, no dia 17 de dezembro, com a leitura de um conto premiado em um concurso infantil das escolas de Madri. Logo depois, anjos dançaram entre o céu e a terra em um espetáculo de imagens, canto e efeitos de luz.

A iluminação da cidade foi idealizada por alguns dos principais modistas, arquitetos e desenhistas espanhóis, que se preocuparam, além da estética, com a sustentabilidade do show de luzes. As lâmpadas, de baixo consumo, permitiram reduzir pela metade as emissões de dióxido de carbono em comparação com o ano passado.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O futebol é nosso


“Buenas noches. Bienvienidos al Santiago Bernabeu, al juego de Real Madrid y Sevilla”. Foi assim que o locutor do estádio deu as boas-vindas às mais de 40 mil pessoas que foram assistir ao 16° jogo do campeonato espanhol, no domingo passado, 19 de dezembro. Os ponteiros do relógio marcaram 21h e a voz do locutor foi substituída por um timbre clássico. As várias caixas de som do estádio eram tão potentes que se podia escutar de longe o hino do Real Madrid, interpretado pelo cantor José Aguilar. Talvez, quem estivesse passando pelas redondezas pensaria que se tratava de um concerto e não de um jogo de futebol.

Os atletas entraram para o campo no compasso da música de abertura do jogo. Enquanto ocupavam o gramado, a torcida aplaudia os jogadores e um vídeo foi exibido no telão com imagens das principais jogadas de craques como Zidane e Ronaldo. A mesma voz que deu as boas-vindas anunciou a escalada dos times.

A partida começou fria, sem grandes emoções. E foi assim até o final, mesmo com um gol do Di Maria, do Real Madrid. Fria também era a torcida que só se manifestou nos primeiros cinco minutos com uma falta marcada pelo juiz. Escutavam-se assovios, murmúrios. Algumas vezes, ouvia-se hijo de la puta. Só na hora da bola na rede que 50% do estádio assumiu o coro, acompanhando a tímida torcida do Real Madrid. De pé, cantaram: “Puta Sevilla, puta Sevilla...”. Logo depois: “Hala, Madrid, hala, Madrid”. Ninguém se abraçou ou deu as mãos para comemorar o gol. Repetiram as músicas umas quatro vezes e se calaram. Voltaram-se os murmúrios e assovios.

Quem mais vibrava no campo era um menininho espanhol que estava atrás de mim. Com cachecol e gorro do Real Madrid, o garoto de mais ou menos 7 anos comentava todas as jogadas e tentava entusiasmar o time: “Vamo, vamo, vamo...”. Enquanto isso, outro homem, ao meu lado, parecia não gostar do desempenho da equipe. Apesar de não entender o que ele falava (dizia um monte de coisas emboladas e aos berros, era daqueles que acha que os jogadores escutam tudo o que diz), fazia caras de insatisfação e gestos feios com as mãos.

As diferenças entre assistir um jogo no Bernabéu e no Mineirão (vou me ater ao estádio de Minas, que é o que eu frequento desde criança) são percebidas logo no trajeto. O metrô – transporte público mais usado para ir ao campo, tanto pelos turistas, como pelos madrilenhos – estava bem mais cheio que o habitual. Sabia-se que tinha um evento pelas camisas do Real Madrid que desfilavam na estação, mas não pelo comportamento dos torcedores. Eles não manifestavam a agitação pré-jogo como se vê no Brasil que começa desde a saída de casa, o esquenta nos bares e é acompanhada por cantorias e buzinaço pela cidade.

As principais ruas de acesso ao estádio estavam movimentadas. Mas, não havia empurra-empurra, filas, gente correndo de um lado a outro, som alto no carro, churrasquinho, grupos de torcedores cada um puxando uma música diferente do time e pessoas desconhecidas se abraçando. Tampouco sujeira no chão, confusão e brigas. Com muita tranquilidade, o público passava pelos vários portões do estágio como se estivesse em um teatro. Não é à toa que a arquibancada e a geral do Bernabéu recebem o nome de anfiteatros. Tem assento marcado e todo mundo respeita o seu.

Entrei no estádio faltando meia hora para começar o jogo e ainda estava vazio. Sem bandeirão e bandeirinha. Sem fumaça e fogo. Sem torcida esquentando a garganta. Um complexo de cair o queixo. Com holofotes em todos os cantos. Arrepiei-me várias vezes por estar ali, no estádio do Real Madrid e ouvindo a música da Copa do Mundo que tocou antes do jogo e na hora do intervalo. Tudo novo, tecnologia de ponta, em perfeita ordem. Mas sem calor de gente – aquilo que as pessoas dizem que os brasileiros têm, sabe como é?

Minutos foram suficientes para que as quase 40 mil pessoas assumissem seus postos no estádio. No Mineirão, isso jamais seria possível. Os torcedores ficariam agarrados nos portões. É por isso que uma ida ao estádio de Minas – acredito que em muitos do Brasil também ocorre o mesmo – tem que ser muito bem planejada. Leva horas. Já temos que sair de casa pensando na fila, no trânsito, na rota do time adversário, no ônibus que pode parar devido à confusão dos torcedores que vão batucando e cantando por todo o trajeto ou quebrando tudo que vê pela frente quando os ânimos se alteram ou quando um cruzeirense esbarra com um atleticano.

Apesar da paixão do brasileiro pelo futebol, é muito difícil um jogo de início de campeonato encher um estádio como foi o de ontem. O Bernabéu estava cheio, mesmo depois de o Real Madrid ter tomado de cinco do Barcelona. Mas não se sentia o fenômeno de massa visto em um jogo no Brasil. A metade de brasileiros em um campo de futebol é capaz de fazer mais barulho que as milhares de pessoas que marcaram presença neste domingo. A bagunça também é desproporcional. Vinte mil brasileiros fazem uma zona inimaginável para 40 mil espanhóis.

No estádio a organização é impecável. A segurança, nem se fala. Onde não tem violência não precisa ter pastor-alemão no meio do campo. Vi poucos policiais e eles passavam quase despercebidos. Não deixam pistolas e cassetetes à vista, e nem tem por quê. Intimidar torcedores civilizados não faz sentido. Se misturavam com os outros funcionários do estádio, vestidos com coletes verdes, bem verdes, para mostrar que estão ali à sua disposição. Eles tiram suas dúvidas e te ajudam a se localizar em um espaço que comporta 80 mil espectadores.

Para ir assistir ao Real Madrid no Bernabéu tem que estar disposto a gastar. Muitos apaixonados pelo futebol não tem condições de ir ao jogo, ainda mais em tempos de crise – só em Madri, mais de 16% da população está desempregada. Para uma partida com o Sevilla, 11º colocado no campeonato, os ingressos variaram entre 65 a 120 euros. A comida também é cara. O tropeiro dos espanhóis é um bocadillo de tortilla (pão com recheio de ovo e batata) que custa 4,5 euros, quase dez reais.

Paguei a entrada mais barata, o que me permitiu sentar no alto do estádio. No alto mesmo, muito mais do que no Morumbi. Via apenas pontinhos no campo, quase não identifiquei os jogadores – tudo bem que não sei qual a cor da chuteira do Luis Fabiano e nem o tamanho do topete do Cristiano Ronaldo.

A distância entre meu assento e o campo fez a dinâmica do jogo parecer mais lenta, definida muito bem pelo meu irmão: "É a mesma impressão de quando se vê um carro passando bem longe em uma estrada e parece estar devagar, enquanto um carro mais próximo, na mesma velocidade, parece se deslocar mais rapidamente", disse. Tudo isso contribuiu para que o jogo não fosse tão vibrante. Nas palavras de uma amiga venezuelana, um pouco aburrido (chato).

Para mim, longe de ser chato. Estava na minha lista de coisas que não podia deixar de fazer em Madri e valeu a pena. Hoje, no entanto, me atrevo a dizer, pedindo licença aos campeões do mundo e que dão exemplo de organização, que o Brasil é realmente muito mais que futebol. Mas futebol é Brasil.  



terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Aliança Brasil-Espanha

A relação entre Brasil e Espanha é histórica. Os laços que nos unem vêm de muito tempo, são séculos de convivência. Os espanhóis constituem uma das expressivas comunidades de imigrantes no Brasil. E muitos brasileiros trocam o gigante da América do Sul e a oitava economia do mundo para ganhar a vida em uma nação que já prosperou, mas que hoje enfrenta os efeitos da crise econômica que assola também outros países europeus.

Uma das importantes figuras para promover a cooperação entre os dois países é o nosso embaixador na Espanha, Paulo César de Oliveira Campos. Fui até ele para saber mais sobre os principais marcos dessa relação e o que esperar do governo Dilma.


Como o senhor avalia a relação entre Brasil e Espanha no governo Lula, já que tivemos um presidente com presença internacional marcante, de cooperação e alianças? Quais foram os principais êxitos e desafios nos âmbitos político, cultural e econômico?
No Governo do Presidente Lula as relações ganharam mais impulso. Foi, por exemplo, nos últimos oito anos que Brasil e Espanha criaram o formato de Parceria Estratégica, em uma relação que vinha crescendo desde o início da década de 90 com a redemocratização dos dois países, com a intensificação das trocas comerciais e do fluxo de investimentos. A Parceria é um dos mais importantes marcos bilaterais. Com ela tratamos temas como educação, intercâmbio, cultura, ciência, tecnologia, comércio, investimentos, apoio ao desenvolvimento e combate à fome. As relações entre nossos países é muito vibrante, contamos com a participação ativa de entidades sociais e de setores empresariais. Os investimentos e o comércio vêm crescendo ano a ano e esperamos que ganhem mais fôlego com o fim da crise financeira internacional. As afinidades culturais e a simpatia natural facilitam as trocas culturais. Temos registrado uma oferta crescente de cinema e música brasileira ao público espanhol. Fico feliz em dizer que a cultura brasileira é muito apreciada na Espanha.

Quais são as expectativas com a posse da Dilma? Haverá alguma mudança?
O Brasil tem uma política externa com linhas de ação tradicionais e bem definidas, que sempre buscaram o desenvolvimento do país e a melhoria das condições de vida dos brasileiros. Tenho convicção de que não será diferente no Governo da Dilma. E, nesse contexto, a Espanha continuará exercendo um papel de destaque, antes de qualquer outro motivo, pelo próprio peso econômico que Espanha e Brasil têm na geração de riqueza tanto de um, como de outro.

Como o senhor qualifica as relações comerciais entre Brasil e União Européia, sobretudo com a Espanha?
O comércio vem crescendo. E tem espaço para crescer ainda mais. Mas para isso, há questões que devem ser enfrentadas, especialmente pela União Européia. O Brasil defende o livre mercado, que achamos que é o caminho mais curto para o desenvolvimento e a distribuição de riquezas. Mas ainda existem muitos subsídios por aqui, que subvencionam tanto a produção quanto a exportação, especialmente de produtos agrícolas. Há também quotas que limitam as vendas brasileiras. Esperamos que esses entraves ao comércio desapareçam gradualmente. No momento, estão em andamento negociações de um acordo de livre comércio Mercosul-União Européia. Esperamos que sejam concluídas em breve e que tenham impacto positivo no comércio entre as duas regiões.

Espera-se algum investimento Espanha-Brasil com as obras da Copa e das Olimpíadas? Ou em outros setores, já que o Brasil é considerado um país forte, seguro e atrativo?
As empresas espanholas certamente estarão entre os investidores em obras relacionadas à Copa e às Olimpíadas. Têm muita experiência em campos-chave, como hotelaria, alimentação, transporte e organização de eventos. Cadeias espanholas de hotéis estão presentes no Brasil há vários anos e já estão investindo pensando no maior fluxo de turistas com esses eventos. O capital espanhol também deve fazer parte da concorrência pela construção do trem-bala entre o Rio e São Paulo. O Brasil espera contar com a experiência da Espanha na organização das Olimpíadas, para trazer um pouco para o Rio o belíssimo espetáculo que foi montado em Barcelona em 1992. Além disso, várias empresas espanholas têm participado do programa Minha casa, Minha vida, por exemplo.

Quais são as medidas que vem sendo tomadas pelas autoridades espanholas e brasileiras para conter o tráfico de mulheres e homens vindos do Brasil para se prostituírem?
O grande problema é a exploração do ser humano, a ameaça, a coação, a violência, o tráfico de pessoas. Os cidadãos que escolhem o caminho da prostituição muitas vezes não têm informação das redes criminosas que estão se envolvendo, que atuam também no tráfico de drogas e armas e com lavagem de dinheiro. Isso tem sido combatido pela cooperação policial e apoio da Interpol. Além disso, o Governo brasileiro, por meio da Secretaria de Política para as Mulheres, vem fazendo um trabalho de orientação e acolhimento de cidadãos prostituídos aqui na Espanha e no município de origem dessas pessoas. Essa atuação é em parceria com as autoridades espanholas.


Qual a opinião do senhor em relação às barreiras que os brasileiros enfrentaram nos últimos anos ao passar pela imigração espanhola?
Em primeiro lugar, acho que deve haver regras claras. Para que a Europa tenha critérios claros para entrada de estrangeiros é necessário maior coordenação entre os diversos estados que compõem a UE, que muitas vezes tem requisitos que conflitam entre si. Todos os países são soberanos e têm o direito de dizer quem entra e quem não entra em seu território. Espanha e Brasil não são diferentes. O que almejamos é, para além das regras claras, que haja condições dignas de tratamento em caso de inadmissão. Mantemos diálogo próximo com as autoridades espanholas e já houve avanços nessa área, tanto que o assunto há mais de ano não tem sido tratado na imprensa brasileira.



Este ano o Brasil sediou a reunião da Aliança das Civilizações. Qual a importância da realização desse fórum no Brasil? Por que o nosso país foi escolhido?
O Brasil apoiou desde o início a iniciativa da Espanha e da Turquia de lançar a Aliança das Civilizações. Acreditamos que os povos e os governos devem fazer sua parte no combate ao extremismo e ao sectarismo. E o Brasil tem muito a dizer a esse respeito. Desde a nossa fundação, somos um país em que convivem muitas culturas e religiões, sem que haja violência em razão disso. 


Como o intercâmbio entre os dois países é estimulado?
Esse é o papel das Embaixadas, seja a do Brasil na Espanha, seja a da Espanha no Brasil: estimular todos os níveis de trocas e intercâmbios, facilitando e incentivando entidades e indivíduos a se conhecerem, a trocarem experiências, a proporem empreendimentos conjuntos. Mas, o maior estímulo decorre da simpatia natural que nutrem espanhóis e brasileiros. Este é o maior acervo que dispomos e que é o estímulo natural do intercâmbio entre nossos povos.


E a cooperação para o desenvolvimento científico e tecnológico?
A Espanha e o Brasil têm nível de desenvolvimento científico semelhante, o que é um celeiro de oportunidades. Assinamos em 2008 um acordo de cooperação que elegeu as áreas em que os dois países têm excelência tecnológica e podem avançar juntos. São áreas bem diversas, como biocombustíveis, nanotecnologia, fármacos ou tecnologia aeroespacial. O diferencial foi que colocarmos as instituições lado a lado, para que houvesse contato direto entre pesquisadores.


De todos os países que exerceu a diplomacia, o senhor percebe alguma particularidade de trabalhar na relação Brasil-Espanha?
Pelo fato de termos afinidade cultural acho que tudo fica mais fácil. Entendemos os espanhóis e eles nos entendem, sem dificuldades. Nossa história recente é muito parecida. A ditadura, a redemocratização, a defesa e a consolidação da democracia. Por isso acredito que a Parceria Estratégica que colocamos no papel já é há muito tempo realidade na vida das pessoas. Fico feliz em ver o crescimento das iniciativas conjuntas, não só no campo dos negócios, mas também na cultura, na ciência, nos esportes. Só temos a ganhar em nos conhecermos cada vez mais.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Outono sem moldura


Aqui no Hemisfério Norte, presenciamos um dos fenômenos mais lindos da natureza: o amarelar das folhas das árvores, que indica a passagem das estações. Estamos no outono e faltam 13 dias para a chegada do inverno. É hora de sair para a rua e ver as folhas que ainda restam nas árvores e as que já formam um manto seco sobre o chão.

Esse cenário me leva à casa de campo dos meus avós, em Conselheiro Lafaiete. De lá, também observávamos a mudança das estações. Lembro-me quando meu avô Celso, há muitos e muitos anos, me chamou até a janela da sala de jantar e comentou que naquela hora estávamos passando pelo solstício de verão, o dia mais longo do ano. Era 21 de dezembro e ele me contava aquilo tudo com muita sabedoria, com um humor discreto e inteligente de um engenheiro que não entende só de números, mas de muitas outras coisas importantes da vida.

Se ele estivesse em Madri, saberia dizer a posição do sol, o grau de incidência dos raios, a latitude da capital e não perderia tempo: faria uma caminhada no Parque do Retiro, um dos melhores lugares para se observar os efeitos do outono. Voltaria cheio de novidades para tornar o chá da tarde das tias mais interessante, para fazer um charme para a minha avó que admira sua inquestionável memória sobre os principais acontecimentos do mundo e para transmitir as notícias do dia a seus filhos e netos.

Ele arrumaria um jeito de bater um papo com o dono da barraca que vende as melhores guloseimas do Parque e perguntaria sobre a história do local. Absorveria todas as informações com o máximo de detalhes, datas, nomes, causas, consequências e curiosidades.
E assim começaria o intercâmbio de conhecimento: você sabe, Carolina, que os jardins foram criados entre 1630 e 1640, quando o Conde-duque de Olivares, vassalo do rei Filipe IV, ofereceu ao monarca alguns terrenos para o lazer da corte? Continuaria...

O Parque possui uma área de 118 hectares e foi concebido pelo cenógrafo italiano Cosme Lotti. Somente tempos depois que foi permitido aos cidadãos ter acesso ao complexo, com uma condição: desde que estivessem bem vestidos e lavados. Informações sobre guerra é com ele mesmo. Então, meu avô complementaria: durante a invasão francesa, em 1808, o espaço foi utilizado como quartel das tropas de Napoleão e ficou parcialmente destruído. Depois da Guerra Peninsular, iniciou-se sua reconstrução.

O Parque possui as fontes das Galápagos, da Alcachofra e do Anjo Caído, além dos palácios de Cristal e Velázquez. O Passeio das Estátuas é uma alameda formada por uma série de esculturas dedicadas a todos os monarcas espanhóis. As obras foram confeccionadas para decorar o Palácio Real. Contudo, nunca chegaram a ornamentar a residência oficial do rei, “devido a um pesadelo da rainha que sonhou que as estátuas caíam sobre ela”, contaria meu avô, em tom de brincadeira.

Depois de saber até dos bastidores da construção e da vida no Parque, ele iria tirar algumas fotos, me mandaria por e-mail e as descreveria de forma poética, com observações parecidas com as que ele me disse outro dia no telefone, me contando que em frente a sua casa o céu estava azul, o dia quente e com mangas nas árvores, contrapondo ao céu cinza de Madri e à falta de frutas pela cidade.

Ele passearia pelo Parque do Retiro de mãos dadas com a minha avó, como se estivessem em um quadro impressionista sem moldura. Se perderiam nas pinceladas de Renoir ou de Monet, que produziam suas obras ao ar livre para captar melhor a variação das cores da natureza e também cenas do cotidiano, como a cumplicidade de um casal de senhores vista em uma tarde de outono.





domingo, 5 de dezembro de 2010

Galícia em som e alma


Violino, gaita de fole, flauta e uma noite inesquecível. Na quinta-feira, dia 2 de dezembro, fui ao primeiro show do grupo Luar na Lubre após o lançamento do CD Solstício. A banda galega surgiu em 1986 e é apreciada em todo mundo como uma das formações mais importantes da música folk europeia.

Soube do concerto antes de chegar em Madri e fiquei totalmente seduzida com ideia de assistir aos compositores da trilha sonora que escolhi para fazer a caminhada inca até Machu Picchu, há quase dois anos.

O espetáculo foi em Alcalá de Henares, em um festival que celebra a concessão do título de Patrimônio da Humanidade à cidade das artes e das letras.

O show agitou a plateia. As quase 500 pessoas – a maioria delas já com os cabelos brancos, provavelmente eu era uma das mais novas –  sacudiam-se em seus assentos e na hora de aplaudir ficaram todos de pé. Mais do que merecido.

Luar na Lubre resgata as raízes culturais da Galícia. Os artistas recordam no intervalo de cada canção contos e figuras importantes da música popular galela. Eles se conectam com a própria história e tocam a alma de um povo.

Os oito integrantes da banda transmitiam tanto orgulho de pertencer à Galícia que me dava vontade de conhecer um pouco mais sobre a cultura dos galegos. Por estarem tão próximos ao país luso são tidos como irmãos dos portugueses e, de tabela, como nossos irmãos, dos brasileiros.

Foi na Galícia que a música celta – subdividida em new age, tradicional, fusion e folk – ganhou corpo, integrando a Espanha às chamadas sete nações celtas. Inclui também
Escócia, Irlanda, País de Gales, Bretanha (região da França), Cornualha (Reino Unido) e Ilha de Mann. O termo refere-se às formas tradicionais de danças e aos improvisos dos trovadores, além de ser caracterizado pelo uso de línguas locais nas letras das canções.

Ir ao show me levou não só à Galícia que eu ainda não conheço, mas a outros lugares, àquele imaginado por Tolkien. Um condado, uma cordilheira, um bosque. Quem gosta de Senhor dos Anéis sabe bem como é. Mas no lugar da irlandesa Enya, era a voz da portuguesa Sara Louraço Vidal no palco, também doce, mágica.  

Um dos momentos mais emocionantes do concerto foi a canção Llove en Santiago. Já estava em meus planos fazer o caminho de Santiago de Compostela, capital da Galícia. Assistir à Luar na Lubre me deu um entusiasmo a mais para me aventurar na trilha. 

domingo, 28 de novembro de 2010

Vida sem disfarce



Com a mistura de água e barro, boné, jaqueta e botas, a polonesa Jolanta Dziuba assume um personagem que não combina com suas bochechas rosadas e com a doçura de sua voz. Ela se transforma em um operário, que troca o silêncio e a capacidade de não se mover por 30 euros diários.

Jolanta é uma das estátuas vivas que entretém os turistas de Madri, “mais do que os próprios madrilenhos”, diz. Ela se destaca entre seus colegas de trabalho pela perfeição de seu disfarce. O barro seca e a mulher de quase meio século de idade vira uma pedra.

Jolanta passa de seis a oito horas por dia praticamente imóvel e em silêncio. “Comecei a trabalhar como estátua por necessidade. Agora, não é só uma questão de ganhar dinheiro. Sinto-me realizada quando as crianças tentam descobrir se sou de verdade ou de mentira”, conta. “O lado ruim é a insegurança. Não sei quanto vou ganhar então não posso me planejar”, relata.

As estátuas vivas se instalam no centro histórico da cidade. Entre elas, não há lei. Vence quem chegar primeiro. Pela manhã, Jolanta trabalha perto da Ópera, um teatro que fica próximo ao Palácio Real. À tarde, na rua Postas, ao lado da Plaza Mayor. No domingo, o local escolhido é o Parque Retiro. “Não tem um lugar melhor que o outro. É uma loteria. Com a crise econômica, meu rendimento está pior. Antes, o que ganhava com cinco horas, agora consigo com oito”, afirma.

Passar tanto tempo parada é um esforço. Rende dores nas costas, pescoço e perna, e a estátua tem que largar mão de um prato de comida ou de uma xícara de café. “Evito beber e comer para não ter que ir ao banheiro. Se não, tenho que tirar o barro e colocar tudo de novo”, conta. Quem pensa que ela está de olhos fechados, engana-se. Estão sempre entreabertos e concentrados nas moedas que garantem seu ganha pão. “Tem muitos ladrões aqui”, revela, quando perguntei sobre o que ela fica pensando enquanto trabalha.

Jolanta aproveita o tempo livre para conversar com suas filhas pela Internet – uma mora na França e a outra na Polônia. Também gosta de ler livros e jornais. Ela participa de um rodízio com alguns amigos poloneses. “Cada semana, um fica responsável pela compra de um jornal da Polônia”, conta a mulher, viúva e órfã de pai e mãe.

Antes de vir à Espanha, há sete anos, Jolanta trabalhava em uma fábrica de materiais metálicos em Chorzow, a 300 quilômetros de Varsóvia. Após a falência da empresa, ela decidiu mudar-se para Madri em busca de trabalho. Sem dominar o espanhol, a polonesa não foi bem aceita no mercado. A alternativa foi exercer uma atividade que não precisasse falar.

Com barro dos pés à cabeça, nos olhos, orelhas e boca, ela se fecha para o mundo. Somente interage com o público quando escuta o som da moeda caindo na caixinha e faz um sinal de agradecimento.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Três nações e um teto



Está vendo a foto acima? É o meu novo endereço. Depois de mais de um mês em busca de apartamento, finalmente encontrei um lugar que posso chamar de minha casa. Será uma república Brasil-Espanha-Venezuela. Duas brasileiras, eu e a Paula – ela é mineira, de Juiz de Fora, a conheci no Rio de Janeiro quando fui buscar o visto e já virou irmã –; uma espanhola, a Virgínia; e uma venezuelana, a Maria Paola. Somos todas estudantes de mestrado. Três jornalistas e uma bióloga.

A localização é o ponto forte do apartamento. Está na Avenida Reina Victoria, a menos de um minuto caminhando até o metrô Guzman el Bueno e a quatro minutos da sede da Fundación Carolina. Também está próximo da cidade universitária, do estádio do Real Madrid – Santiago Bernabéu, e só tenho que pegar uma linha de metrô para chegar ao centro histórico.

Encontrar apartamento em Madri não é nada fácil. É muito comum dividir “pisos” e há muita oferta. Porém, cada imóvel tem um problema. Uns estão velhos demais, outros não tem aquecedor, alguns proprietários pedem três meses de fiança e aval bancário, outros exigem assinatura de um nativo, muitos tem o vaso quase dentro do boxe e por aí vai.

Não dá para esperar apartamentos cheirando a carro novo. Afinal, Madri é uma cidade de 927 anos. Os imóveis são velhos e os cômodos distribuídos à moda antiga, ou à moda madrileña, não sei de onde vem o estilo (algum arquiteto sabe me explicar?).

A minha casa está distribuída da seguinte forma: pega uma planta de um apartamento e vira de cabeça para baixo. Virou? O meu apartamento é assim, como muitos daqui. O primeiro cômodo é um quarto. Depois vem a cozinha. Agora, um corredor. Enorme e escuro, o corredor poderia ser aproveitado para ampliar os quartos para não ter que ficar escolhendo por onde anda com receio de trombar no armário. Tem um banheiro ao lado do outro, mais três quartos e, por último, vem a sala. Os visitantes têm acesso a todas as partes íntimas do imóvel até chegar ao espaço de convivência. 

O ideal é visitar os apartamentos direto com o proprietário. Assim, se faz uma boa economia. Quando tem agência mediando a negociação tem que pagar um mês de aluguel. Os principais sites de busca são: segundamano, idealista e loquo. É só ligar e pedir para visitar. Os sites são 100% seguros. Quer dizer, quase 100%.

É importante ter cuidado com as pegadinhas. Há espertinhos que colocam anúncios falsos na internet. Quando você liga solicitando uma visita, o suposto proprietário diz que não está no país e pede para enviar um depósito como garantia do empréstimo da chave.

E será que tem bobo que cai nessa história? Tem, eu e a Paula. Não depositamos o dinheiro. Mas ficamos tão seduzidas com a oferta – era um dos melhores apartamentos que olhamos na internet – que não desconfiamos de imediato que se tratava de uma farsa. Só depois que recebemos um telefonema do dono, com o código da Nigéria, e que algumas pessoas nos contaram casos semelhantes que desvendamos o mistério do apartamento fantasma.

O aluguel do nosso lar foi certeiro. A proprietária é uma espanhola bem simpática, que cuidou de tudo para que a nossa estada em Madri seja a melhor possível. Apesar de parte da estrutura estar capengando e de requerer uma senhora faxina, nossa casa tem um ar de que muita, muita coisa passou por aqui. Já encontramos pertences de antigos moradores. Não precisei estar em Paris para me lembrar de Amelie Poulain. Me fez sentir ainda mais no Velho Mundo.

domingo, 14 de novembro de 2010

Nada de gala, mas real


Manuela, a garotinha da foto acima, corria pela Plaza do Oriente, em frente ao Palácio Real de Madrid – o maior de toda a Europa Ocidental –, às 20h de um domingo. Sua mãe, Laura, a vigiava, enquanto outros madrileños e turistas passeavam pelos arredores da moradia do Rei da Espanha.

Embora seja a sua residência oficial, o monarca Juan Carlos utiliza o espaço somente para ocasiões de gala, almoços, recepções, entregas de prêmios e audiências. A Família Real optou por viver no Palácio da Zarzuela. Considerado mais “modesto”, o lugar está mais afastado do centro da cidade.

Enquanto Sua Majestade tenta preservar a intimidade vivendo longe do agito da capital, as pessoas curtem a paisagem do Palácio, que um dia foi uma edificação defensiva.

Por ali, tem todo um movimento que vai muito além dos flashes dos turistas que tiram fotos sem parar. Dá para entender a ânsia pelo registro. O lugar é icônico. Não só pela beleza da arquitetura, das praças e dos jardins do entorno, mas também pelas pessoas que vem e vão com o passar do dia e com a mudança de cor do céu.

Pela manhã, as crianças andam de bicicleta, os pais caminham e os atletas correm. Uns, sem camisa, desafiam o frio de 7 graus. Depois do almoço começa a invasão de turistas. No Jardin de Sabatini, casais namoram. Uns trocam beijos calientes, outros, não precisam disso. O esquentar das mãos dadas é suficiente.

No final da tarde, senhoras marcham até a missa. As freiras desfilam em suas túnicas que levantam uns centímetros com o vento. Um grupo de garotos assume a Plaza da Armería para andar de skate. As meninas se derretem com as manobras e quedas. Uma delas comprova que não só os homens dominam o ofício.

A noite vai chegando e um homem aproveita o escurinho da praça para dar um trago. Um cubano – sem residência oficial e não-oficial –, chama os meninos da rua de sobrinhos. As horas correm, o frio pega e é hora de ir para casa – para quem tem uma – depois de um dia sem pompa. Nada de gala. Mas real.



Raio-x do Palácio
  • É o maior de toda a Europa Ocidental, ocupando uma extensão de 135 mil m².
  • Sua origem remonta o século IX.
  • Seu interior está decorado com obras de artistas como Goya, Velázquez e Caravaggio.
  • As fachadas medem 130 metros de lado por 33 de altura.
  • Tem 870 janelas e 240 varandas.
  • Possui 2.800 divisões. Em algumas delas não se entra há anos.
  • A mesa da sala de refeições de gala tem capacidade para 145 pessoas.
  • Abriga a coleção de instrumentos Stradivarius mais importante do mundo, com o quinteto dos "Stradivarius Palatinos".

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Mundo subterrâneo

“Uno, dos, tres, cuatro, los pulgares preparados”. Enquanto dois irmãos de mais ou menos cinco anos se entretinham com aquela brincadeira dos polegares – de quem prende o dedo do outro primeiro –, uma mulher de óculos escuros entrou no metrô. Ela não podia vê-los. Mas escutava-os perfeitamente.

A moça apoiou na porta e por lá permaneceu até a estação Sol de Madri, ouvindo a cantoria das crianças, o som dos trilhos, o abre e fecha de portas e sentindo as vibrações do restante das pessoas que estavam no mesmo vagão. Silenciosas, cada uma aproveitava as horas gastas no metrô com um passatempo que ia desde leitura até um cochilo.

O metrô de Madri possui 13 linhas que atravessam 293 estações. Sete mil pessoas trabalham nos 283 quilômetros da rede, para atender aos cerca de 2,5 milhões de usuários por dia. É um mar de gente subindo e descendo as 1.547 escadas rolantes. Uns mais apressados, outros divagando, todos com o mesmo objetivo: chegar a algum lugar. E para isso, o metrô tem as suas próprias regras.

Logo você aprende que não se deve ficar do lado esquerdo da escada rolante se você não tem a intenção de subir a passos mais acelerados – é como a pista da esquerda que deve ser liberada para os carros mais velozes –, mas as pessoas não piscam farol, fazem cara feia ou dão cotoveladas, segundo relatos de um amigo que está em Paris. Aprende também que tem uns espertinhos que esperam você sair da catraca para entrar sem pagar; que tem doutores em roubar carteira, abrem a sua mochila e você nem vê o rastro; e que seu dia pode ficar muito melhor no troca-troca de linha. São os músicos do metrô que enchem a nossa vida de alegria. Se gostou, dá um trocado.

E é assim que as pessoas interagem sem interagir. Com o esbarrar de corpos, com um pedido de “perdón”, com a troca de olhares, com poucas palavras. Quase ninguém conversa. Só um turista perdido que pede informação para quem está ao lado, quando se está entre amigos ou quando o silêncio parece insuportável e dá vontade de falar. Mas o bate-papo geralmente é limitado, como aquele que temos em elevador. Só que aqui, ainda não se fala de calor.

O metrô é muito mais do que um meio que nos transporta e nos conecta a outros pontos da cidade. Pode ser um espaço de leitura, de meditação, de cochilo, de reflexão, de pensar, de paquerar, de finalmente sentar, de esticar as pernas quando não tem assento, de estudar, de escutar música, de brincar. Raramente é um lugar onde se faz amizade. Tampouco de observação. Quando não estão concentradas nos seus pertences, as pessoas voam longe, não se prendem a nada que esteja ali, agora.

Quase todos ficam de cabeça posta para baixo. Portam utensílios como jornal, celular, computador, livro, Ipod – alguma distração para sentir que o tempo não foi perdido. Ninguém olha para o lado. Aproveitam os minutos de deslocamento para jogar paciência no BlackBerry e sudoko, comer mexerica, ler grandes obras como a Divina comédia e escutar Michael Jackson (em um dos poucos momentos compartilhados, o garoto estava com o fone de ouvido no máximo. Acho que todos ficamos com vontade de deslizar os pés como o mestre do pop, mas nos contivemos).  

É assim que as pessoas geralmente se comportam no metrô. Todos se contêm. Os jovens, os adultos, os trabalhadores, os pedintes, os nativos, os estrangeiros, os de salto alto, os de tênis, os de moleton, os de terno e gravata, as senhoras, as de mini-saia, os de cabelo em pé. Às vezes um bêbado ou um louco interrompem o silêncio dizendo coisas que ninguém entende. Ninguém se move, só os olhos. Esses sim conferem se a situação representa algum risco ou se podem dar continuidade à leitura da revista e ficar por dentro do mundo das celebridades.

Querendo saber de outros mundos, poucos vivem o mundo que é o metrô. Um retrato da diversidade que não emite som. Só o som gravado de uma dupla de homem e mulher que anuncia a chegada de uma estação. “Proxima estación: Sol. Corresponecia con: líneas 1, 2 y 3”. Foi nessa estação que a moça de óculos escuros desceu. Ela parecia ter total domínio do que estava fazendo e ser a que mais tinha consciência de tudo que se passava ali. As crianças ainda brigavam com seus polegares quando a mulher apertou o botão para abrir a porta. Saiu, junto com mais uma multidão de gente desconhecida que não quer se conhecer. Ela conhecia.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

No chão da praça



Os termômetros marcam entre 5 e 15 graus. Para nós, brasileiros, é um convite para ficar em casa debaixo do cobertor e assistir a um bom filme. Já em Madri, é a temperatura ideal para abandonar os cachecóis, despir-se dos casacos e sentar sem ter que pedir licença em ruas, parques, praças e jardins.

Por todos os cantos da capital espanhola se vê grupos de amigos, casais e famílias reunidos no chão. É assim que aproveitam os dias quentes de outono antes que o inverno chegue com força, esfrie o cimento e nos obrigue a trocar o ar livre por sofás dentro de cafeterias ou de casa. 

Na foto acima, as duas mulheres batem papo na Plaza Mayor, um dos principais pontos turísticos de Madri. Elas permaneceram por lá por um bom tempo, tranquilas, como se fizessem parte de um mundo paralelo e não estivessem dividindo com mais um monte de gente os 129 metros de comprimento e 94 de largura da praça, rodeada por edifícios de três andares e 237 varandas.

Às vezes, o pensamento delas parecia ir longe. Talvez, estivessem imaginando como seria aquele lugar, erguido há quase quatro séculos a mando de Felipe II. Antiga sede da corte, a Plaza Mayor constituiu uma intensa zona de comércio e foi palco de grandes eventos como coroação de reis, corrida de touros, julgamentos da inquisição e execuções de condenados à morte.

Hoje, a praça não recebe mais touros. Mas um rebanho de turistas e madrileños que se entretêm com os artistas de rua, com comes e bebes e se sentem bem à vontade para sentar, relaxar y hablar, até no chão.

Mais fotos da Plaza Mayor:
 



sábado, 30 de outubro de 2010

Pré-natal

Cheguei. Entrei no primeiro mês do “embarazo”. E que embarazo. Com duas semanas de Espanha, minha rotina continua embaralhada. Aos poucos tento reorganizar a vida. É muita mudança para uma pessoa só.

Se você ouvir falar de uma menina sempre apressada pelas ruas de Madri, cheia de jornais e caderno na mão, carregando uma bolsa que parece pesar uns bons quilos, pode saber, sou eu.

Aí vai a primeira dica: em Madri, more perto do metrô ou na região central. Senão, você vai passar o dia debaixo da terra, deslocando-se de um lado a outro da cidade.

Estou hospedada na casa de uma brasileira até que eu encontre um lugar mais bem localizado. Tenho aula das 10h30 às18h30 e demoro mais de uma hora até a universidade. Foram raras as vezes que cheguei em casa antes das 23h.

A noite é curta. Saio à procura de apartamentos, participo de atividades obrigatórias da Fundación Carolina, resolvo questões burocráticas como abrir conta, comprar celular e dar entrada no NIE – número de identificação de estrangeiro. Tento ainda conciliar estudo com passeios e encontro com os amigos.

Sexta passada, por exemplo, fiquei mais de 22h horas de pé. Acordei às 8h e só me liberei às 23h40, quando fui encontrar com os amigos em um bar, saída que rendeu até as 6h. Fiquei escrevendo à tarde e praticamente a noite toda – só neste fim de semana tenho que produzir para o mestrado uma crônica, uma reportagem, uma notícia e uma foto.

Essa é a vida de jornalista, correndo contra o tempo. Conversando com a “escravaisaura” – assim se apresentou uma das colegas de sala, a minha mais nova amiga venezuelana –, comentei que gostaria que as horas triplicassem, ou parassem.

“Calma, você está aqui há duas semanas. É normal. Depois, as coisas se ajeitam. Quando cheguei em Madri fiquei de favor no apartamento de um conhecido. Não tinha luz e nem elevador. Tive que subir quatro lances de escadas com seis malas”, contou.

Suas palavras me confortaram. Em minha atual casa não fico no escuro e só tinha duas malas que foram para o segundo andar com o apertar de um botão. Mas, mesmo assim, me deu vontade de estar “desembarazada” ou menos “embarazada”. É uma tentação estar em Madri e perceber que não sobra tempo. Gostaria de ficar livre por aí, caminhar sem olhar para o relógio. 

Despedi-me da Isaura e troquei de linha na estação. Peguei a direção errada do metrô. Pensei: “É, Dona Embarazada, você está precisando mesmo é de uma licença”. Dei-me uma folga. Desisti da agilidade do metrô e subi até a superfície.  Dizem que caminhar faz bem para uma “gestação” saudável. 

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Conversa de outro mundo


- De donde eres?
- De Espanha.
- Y tu?
- Soy brasileña.
- Cuanto tiempo vas a estar en Madri?, perguntou-me o homem de cabelos grisalhos, sapa-tênis colorido, calça pega frango e uma blusa de lã que mais parecia um poncho.
- Nueve meses, respondi.
- Es un embarazo, no?
- Si, disse, sorrindo.

Foi assim que dei início ao meu primeiro diálogo em espanhol com o meu vizinho de assento no avião.

Sabia que começar uma viagem conversando com um nativo ainda no ar seria uma boa forma de me sentir à vontade antes que pisasse em solo desconhecido. 

Quando se está sozinho e o objetivo não é desfrutar da solidão - muitas vezes o silêncio cai muito bem -, não perca tempo. Puxe uma conversa. Daí, certamente sairão boas histórias. Todo mundo tem a sua.

Com uma pergunta aqui, outra ali, ganhei a confiança do espanhol, a prosa foi se soltando e o homem, me revelando uma trajetória nada comum.

Ele estava no Brasil há nove meses – esse número me persegue, pensei. Vivia em Cunha, no interior de São Paulo. Tão diferente quanto esse lugar, que eu nunca tinha ouvido falar, era o que o senhor de mais ou menos 50 anos me revelava.

Ele morava em uma cidade que eu não entendi muito bem o nome, perto de Madri. Trabalhava como pedreiro, eletricista, carpinteiro, corretor e mais um monte de outras atividades de um típico “faz tudo”.

O homem não sabe ao certo quando percebeu que nada em sua vida fazia sentido. Decidiu mudar de rumo, integrou a Comunidade Semente Galáctica e foi ao Brasil para fazer um curso de milagres.

Ele me falou sobre kosmos, da vontade que sentia de salvar o mundo, me perguntou se já tinha assistido os filmes Quem somos nós e Matrix.

Antes que o assunto ficasse mais estratosférico, me dei conta de que ainda não tínhamos trocado os nossos nomes.

Então, perguntei:

- Cuál es tu nombre?

- Bueno, hoy, me llamo Jake.

Fiz uma cara de interrogação e ele continuou:

- Siempre cambio de nombre. Ya me llamé Juan también. Pero mi verdadero nombre es Emílio.

- Pero por que?

- Cambiamos todo el tiempo, la forma de pensar, de ver el mundo.

Fiquei pensando como me chamaria amanhã. Não me veio nada na cabeça. Meus olhos já estavam pesados de sono. Era quase 1 da manhã. Agradeci pela conversa. E ele, com um sorriso nos lábios, me respondeu:

- Muchas gracias por escucharla.

Antes que eu fechasse de vez os olhos, perguntei:

- Y ahora, como te llamas?

- Ahora, soy Juan sin nombre. Soy solo el hijo de dios.