quarta-feira, 30 de março de 2011

Rastro do tesouro


Entre os séculos XV e XVII, nas inabitadas ruas da capital espanhola, erguia-se um matadouro. Degolavam-se carneiros, porcos, vacas, cabras e touros, que eram vendidos para todo o país. Os pobres bichos não fizeram a revolução. Deixavam rastros de sangue pelas ruas de onde viria a compor, tempos depois, a elegante e imperial Madri.

Foi desse cenário de sacrifícios que surgiu o nome do mercado mais popular da cidade: o Rastro, passagem obrigatória para muitos turistas. Juntaram-se à matança dos animais fábricas de sapatos, arreio, roupa, produtos derivados do sebo, comidas e até objetos roubados. No século XIX, chegou o comércio de livro, compra e venda de móveis e a feira foi adquirindo um aspecto diferente de suas origens sangrentas.

Hoje, o mercado atravessa uma região que chama La Latina, entre a Plaza de Cascorro – considerada a mais emblemática do Rastro por possuir uma estátua do Rei Alfonso XII – e a Plaza del Campillo del Mundo Nuevo. O espaço abre aos domingos de 9h às 15horas e oferece produtos de todos os tipos, de 1 a 100 euros, de boa e má qualidade.

São 3,5 mil postos de vendas. Sapatos, bolsas, bilhete de loteria, utensílios domésticos, colares, brincos, roupa nova e usada, acessórios de informática, CDs, camisas do Real Madrid e do Iron Maiden. Lembra a Feira Hippie de Belo Horizonte ou outros mercados do Brasil. Refiro-me ao tipo de mercadoria. Quanto ao local, aos produtores e aos consumidores, esses sim, são bem diferentes.

Os vendedores do Rastro são, geralmente, imigrantes vindos de todas as partes do mundo. E os clientes, mais turistas do que madrilenhos. Muitos dão o ar da graça só pela tradição do lugar e não pelas compras.

Com fama internacional, a concentração de visitantes na feira pode chegar a mais de 10 mil pessoas por dia. O ibope tem fundamento. Nas palavras do escritor espanhol, Rámon Mesonero Romanos, visitar o Rastro é mais do que um passeio, é uma verdadeira “caça ao tesouro”.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Odisseia virtual


No dia em que o Japão tremeu, os portais de notícias mudavam de cara para divulgar as impressionantes cenas do maior desastre natural dos últimos tempos e um dos eventos mais documentados da história.

No site espanhol El Mundo, era possível acompanhar "la crisis, en vivo". O concorrente El País respondia à altura, criando uma coluna exclusiva para o tema. Disponibilizavam, em tempo real, todos os recursos que só a internet permite reunir em um mesmo espaço: vídeos, imagens, áudios, infográficos, depoimentos e textos.
                                                                        
Como toda notícia tem prazo de validade, o protagonismo oriental estava com dias contados. Os países aliados deram início à missão Aurora da Odisseia, abriram fogo contra Gaddafi, e os portais novamente foram redesenhados. Mapas interativos, análises e linha do tempo. A primavera árabe recuperava seu destaque no ciberespaço.


Nos bastidores, jornalistas multimídia tentam reinventar a roda e se aventuram no mundo ilimitado dos bytes. Desse esforço surgem grandes reportagens e novas formas de contar histórias. Resgatam o bom jornalismo, aquele que poderia ser "um bilhete de loteria premiado", dizia o mestre Kapuscinski.     
                                   
Os dois principais sites de notícia da Espanha - citados no primeiro parágrafo - e o Marca, jornal de esportes mais lido no país, estão na dianteira da produção de reportagens especiais multimídia.

Conteúdos que deixam de ser uma simples adaptação do impresso para o meio digital - vista nos primeiros jornais online -, e se convertem em materiais exclusivos para a web. Confira (clique no título para ter acesso à página):




quarta-feira, 16 de março de 2011

25 anos, 5 meses de embarazo



Às 10h35 do dia 16 de outubro de 2010, estava desembarcando na Espanha ao lado de “Juan sin nombre”, meu misterioso vizinho de assento no avião. A conversa com o espanhol, além de ter me inspirado a escrever o primeiro texto para o blog já em solo madrilenho, introduziu o que viria a ser essa jornada: uma caixinha de boas surpresas.

Passados cinco meses, acordo às 8h com um burburinho na porta do meu quarto. Minhas amigas Rachel, americana, María Paola, venezuelana, e Virgínia, espanhola, cantam “cumpleaños feliz” entre diferentes sotaques. Hoje, no dia em que celebro um quarto de século, também completo cinco meses de embarazo.

Nesse período, outras estrelas iluminaram meu caminho. Fizeram com que a minha estada em Madri recebesse um brilho a mais. Até no “acaso ordenador das coisas”, como diria Pedro Fonseca, uma pessoa muito especial. Na Itália ou no Irã, sempre esteve presente, trazendo luz em palavras, aventuras e coragem.

A manhã segue com coincidências que não são coincidências. No metrô, às 9h15, escuto “parabéns para você” vindo do outro lado da plataforma. Era Natália San´t Anna, a segunda brasileira que conheci em Madri, e que virou minha irmã. Ela também estava indo à aula, só que na direção contrária, na companhia de Jholany Blanco, colombiana e uma das minhas companheiras preferidas de conversas e saídas. Enquanto o trem partia, acompanhava as palmas e o sorriso da Nat, que ficaram para trás junto com os olhares curiosos que não entendiam o que era “muitas felicidades, muitas anos de vida”.

Chegando no jornal, poucos minutos antes das 10h, a venezuelana Andreína Reina, também bolsista da Fundación Carolina e meu braço direito no mestrado, me esperava com o bolo da foto acima. Para um dia de aniversário sem planos, me surpreendi com gestos carinhosos, de pessoas que conheço há poucos meses, mas que já fazem parte de histórias inesquecíveis.

Além delas, poderia citar vários outros nomes. Fernando Silveira e Paula Daibert, que, junto com a Nat, formaram a minha família brasileira em Madri. Guilherme Fogaça, candidato a ser o quinto elemento, que conquistou os nossos corações pela simpatia.

Isaura Fontcuberta, responsável pelo meu primeiro bate-papo no mestrado. Nos conhecemos logo na catraca da sede do jornal, no primeiro dia de aula, e dias depois já estava madrugando em sua casa fazendo trabalho, comendo pizza e ouvindo música, da salsa à bossa.

Ana Martinez e Kennan Mieroop, meus professores de violino e de francês, que transformaram as minhas sextas e domingos em notas, letras e poesia. Kênia Magalhães, que me acolheu e me hospedou nos primeiros dias de Madri. Seu namorado, Yosu Navalpotro, que me levou ao parque de diversões de Madri com seus filhos lindos e me fez descobrir que, quanto mais velha, mais eu tenho medo de altura e meu gosto por algodão doce só aumenta.

Meus primeiros amigos, os venezuelanos Pablo Hurtado, Alek Szabunia e Pablo Tu. No meu primeiro domingo em Madri, me apresentaram a cidade e tivemos a primeira conversa no chão da praça. Laura Castelló, uma espanhola que conheci buscando apartamento - daquelas que dá vontade de levar para casa - e a afinidade foi instantânea.

Sílvia Méndez e Rosa Aldana, que me convidaram para participar da criação do programa de rádio Huellas Latinas, da Fundación Carolina, e tem sido uma experiência enriquecedora. Minha xará argentina, Carolina Andreotti, que me recebeu como uma filha e amiga e me levou pela primeira vez ao Parque do Retiro, um dos meus lugares favoritos de Madri.

As paulistas Vanessa de Paula, Lígia Nogueira e Maria Fernanda de La Cruz, as cariocas Marina Golçalves e as duas Paulinhas, Chalhoub e Albuquerque, que trouxeram alegria e cumplicidade. Jolanta, a estátua-viva que me presenteou com a sua história e me mostrou que o silêncio ensina mais que muitas palavras. Maria José, a camareira da pousada do Sr. Manuel, que tem o abraço mais gostoso do mundo, depois do abraço da Tia Raquel.

Fábio Junque, que me levou para Liverpool sem sair da Espanha e dividiu comigo um dos momentos mais memoráveis, assistir ao show do Luar na Lubre, em Alcalá de Henares. Tiago Meira, que me convidou para um dos melhores programas: assistir aos seus concertos de flauta. Rodrigo Borges, que ouvi pela primeira vez pouco antes da viagem e que acabou tornando minha trilha sonora de Madri, me fazendo sentir em casa ao recordar das nossas gerais.

Muitos outros nomes. Meus amigos do Brasil, minha família e você, que me acompanha de perto e de longe, me motivando a contar aqui as minhas histórias, experiências, ideias, impressões e sentimentos, frutos de um embarazo que já passou da metade, mas que ainda tem muito para acontecer.

Neste dia, só tenho a agradecer. Obrigada!

domingo, 13 de março de 2011

Um carnaval cheio de ressalvas


O carnaval espanhol pode não ter o mesmo destaque que o do Brasil, entretanto, o país já serviu de inspiração para a composição de marchinhas brasileiras. Um presente da minha amiga Débora Fantini - quem me apresentou a música - para você.

Carnaval sem feriado, sem capa de jornal. Uma bailarina entrava no metrô de mãos dadas com o pai, um casal de múmias contrastava com a roupa cor de rosa da niña, algumas coroas de rainha, perucas e o resto das pessoas com roupas normais. Inclusive eu, que quando me perguntavam de que estava fantasiada, respondia:  de jardim. Era carnaval e ninguém precisava me entender, certo?

Enquanto no Brasil estavam todos na folia e a primeira página de todos os jornais exibia as fotos do carnaval mais popular do mundo, aqui em Madri a vida seguia como um dia qualquer e o portal do El Mundo tinha as mesmas cores, a da corrupção do caso Gurtel, a da polêmica do vice-presidente Alfredo Pérez Rubalcaba, a do terrorismo do ETA, e a do massacre de Gadafi.

Com o tema “festa dos loucos”, a prefeitura convidou os madrilenhos a se deixarem invadir pelo espírito satírico do carnaval, despertar a fantasia, a ilusão e soltar a imaginação em uma “saudável loucura”. Na programação constava: concertos, como o da Banda Sinfônica Municipal, concursos de fantasia, bailes e desfiles fazendo alusão a Don Carnal, o protagonista da festividade, e a Ulisses.

Segundo relatos de alguns amigos, a propaganda não garante a adesão do público: “Fui em um dos desfiles convocados pela prefeitura e quando cheguei já estava acabando. Na Venezuela dura o dia todo”, disse a maracucha Maria Paola Sanchez, que divide o apartamento comigo. Apesar do carnaval em Madri não dar muito ibope, a Espanha é conhecida por promover duas outras celebrações que se enquadram na categoria de “Festa de Interesse Turístico Internacional”: a de Cádiz, na Andaluzia, a de Tenerife, em Canárias.

Nos dois bares brasileiros mais conhecidos de Madri, o Maloka e o Kabokla, a propaganda foi sedutora. “Movida brasileña carnaval 2011”. A mobilização começaria com uma batucada na rua, passando por alguns bairros e praças no coração da cidade, e terminaria nos bares, onde a festa continuaria madrugada adentro. Todos foram convidados. Era só levar um instrumento e pronto, a bateria estaria formada.

Na mesma hora me animei e pensei em escrever um texto para o blog sobre como os brasileiros celebram o carnaval na Espanha. Pela fama que vem debaixo da linha do Equador, o tema vira até notícia. Antes mesmo de saber da mobilização em Madri, um colega do mestrado me informou que as emissoras de televisão daqui já haviam exibido reportagens sobre o assunto; ao contrário do carnaval dos próprios espanhóis, que não tem tanta repercussão na mídia.

O primeiro título que veio à minha mente foi: Aqui também tem carnaval. No entanto, depois de ter participado do evento e redigir este texto, tive que mudar de ideia.  

O comportamento dos brasileiros que moram aqui frente a uma das datas mais esperadas do ano foi variado. Alguns estavam inconformados no facebook. “Me salva desse carnaval desesperador”, postou minha querida amiga Natália Sant` Anna, que chegou na mesma época que eu em Madri, em outubro, para fazer um mestrado em Desenvolvimento Sustentável também pela Fundación Carolina.

Aiiiiii carnaval frio, trabalhando ou estudando... ninguééééém merece néééah??? Vou bloquear todo mundo do Brasil dos meus feeds... (se bem que de agora até quarta tá todo mundo se divertindo por aí, só os looserssssss vão ficar tweetando!! hehehe). Oh Dios!”, publicou a paulista Lígia Nogueira, há mais tempo em terra espanhola.  

Nessa mesma linha, encontravam-se alguns brasileiros que preferiam esquecer que o carnaval existe e se refugiaram dentro de casa. Outros aproveitaram para tirar férias e foram ao Brasil, que é o caso de duas cariocas ótimas que conheci aqui, as duas Paulinhas, a Albuquerque e a Chalhoub. Para os que ficaram em Madri, como eu, havia uma segunda opção: juntar-se ao movimento – e foi a que escolhi.

Infelizmente, não pude participar da batucada porque estava gravando um programa de rádio. Segundo relatos do meu amigo Gui, jornalista e mestrando pelo El País – que chegou a cogitar que passaria o carnaval em branco –, o batuque foi o melhor da festa. “Me surpreendi positivamente, talvez por que estava esperando pouco”, contou.


Foto e vídeo cedidos pelo Gui

Fui direto para o bar. Chegando lá, foi a primeira vez, em quase cinco meses de embarazo, que escutei mais de dez pessoas falando português no mesmo ambiente. Os muitos “oi”, “tudo bom” e “obrigada” da noite não fizeram com que eu me sentisse em casa.

Uma fadinha e um anjinho na minha frente com sotaque do interior de São Paulo. Os dois amigos, que chegaram à capital espanhola há menos de dois meses para estudar, foram em uma loja de chinês – aqui têm muitas delas, que vende todo tipo de mercadoria – e garantiram a fantasia.

Estavam animados, mas a festa exportada do Brasil pareceu não convencê-los: “É, até que eles tentaram, mas não tem como ser igual”, disse um deles, com ar de decepção, enquanto cantava “moro, num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza...”. “Nunca achei que acabaria o carnaval cantando Ana Júlia”, comentou Natália.

É claro que não dá para esperar um verdadeiro carnaval brasileiro, se é que existe um. Uma tradição que atravessa o oceano para chegar na Península Ibérica vai perdendo suas características e ganha outra forma. As múltiplias maneiras de celebrar – a dos trio-elétricos, das cidades históricas de Minas, do samba, da marchinha, do frevo e do maracatu, dos desfiles, do sambódromo, dos blocos de rua e muitas reticências, cada um faz a sua maneira – virou um evento carente da espontaneidade típica do carnaval.

O que era para ser a “pura transgressão”, “uma experiência plena, com todos os corpos livres para vivê-la”, citando minha amiga e jornalista Débora Fantini – que escreveu recentemente em seu blog suas experiências de carnaval –, sofreu uma adaptação forçada, nada natural.

O mais parecido com “parte do que fazemos” era a televisão do Kabloka que exibia o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro – não é a toa que os estrangeiros acham que o nosso carnaval é só sambódromo e mulheres de pluma. Marchinhas? Não fazem nem ideia do que seja isso, tampouco os organizadores da festa que escolheram para a trilha da noite Ivete Sangalo e outros axés e pagodes comerciais.

Além dos brasileiros pouco integrados, em pequenos grupos de amigos, tinha alguns estrangeiros – e bem soltinhos, mais do que todas as vezes que vi aqui em Madri. Fiquei pensando se era o clima de irreverência do carnaval. Ou se era a fama das brasileiras que subia na cabeça dos gringos junto à dose pesada de álcool.

Tinha convidado vários amigos para ir à “movida brasileña”. Por imprevistos, ninguém pôde ir ao bar e me senti aliviada. Não era esse Brasil e esse carnaval que eu queria mostrar. Nessa crise de identidade carnavalesca, lembrei-me, mais uma vez, da minha amiga Débora, que, em uma das nossas conversas, falava que carnaval não tem data marcada. Fiquei então à espera do carnaval do dia a dia, sem pretexto para se viver a alegria agora e amanhã, não é mesmo, Dé? 

terça-feira, 8 de março de 2011

Espanholas na contramão


Uma sala de aula, muitos homens e algo suspeito. A espanhola Concepción Arenal (1820-1893) frequentava o curso de direito na Universidade Complutense de Madri com vestes masculinas e contra a vontade de sua mãe. Também com calça e camisa de botão, participava de discussões políticas e literárias, desafiando a cultura do patriarcado que excluía as mulheres da educação universitária. Com ela nascia o feminismo no país. Arenal criou condições para que, mais tarde, outras espanholas questionassem seus direitos e deixassem de ser coadjuvantes. Assim como a escritora galega, essas mulheres foram imortalizadas em nomes de ruas, em prêmios, na memória e continuam influenciando vidas na Espanha.


Diferentemente da trajetória de Arenal, a espanhola Emilia Pardo Bazán (1851-1921) não teve que enfrentar a família para perseguir seus sonhos e conquistar seu espaço em uma sociedade de dominação masculina. Desde criança teve apoio dos pais para se dedicar aos estudos e à escrita – sua verdadeira paixão –, sendo liberada das tarefas domésticas. Em comum com a moça que se passava por rapaz, Bazán também se consagrou como uma importante escritora do século XIX e uma das primeiras feministas da Espanha. Publicava artigos denunciando o sexismo predominante no país e exigindo mudanças, a começar pela possibilidade de uma educação igual a dos homens.

Entrava o século XX e os desafios para as mulheres ganhavam outra roupagem. A Espanha estava dividida: de um lado, a extrema direita, as classes privilegiadas e seus aliados, que se posicionaram contra as tentativas de reforma do governo republicano socialista. De outro, o povo, que buscava qualidade de vida e se opunha às atrasadas oligarquias espanholas e seus aliados nazistas e fascistas em plena ascensão no continente europeu.

Nesse contexto, surgem outros nomes. Isidora Dolores Ibárruri Gómez (1895-1989), conhecida como Pasionaria, foi dirigente do Partido Comunista. Destacou-se na Guerra Civil espanhola (1936-1939) e introduziu a questão de gênero na pauta política: “as mulheres são seres livres para escolherem seu próprio destino”, sentenciou. Trabalhou no jornal o Mundo Obrero e, em 1933, fundou a União de Mulheres Antifascistas. Foi presa várias vezes por participar de manifestações e depois da Guerra Civil se exilou na União Soviética, onde foi integrante da Internacional Comunista. Algumas frases de seus discursos, como “Mais vale morrer de pé que viver de joelhos”, formam parte do imaginário coletivo da Espanha, e Pasionaria acabou tornando-se um mito para o país. Seu papel de símbolo popular a converteu em um mito, inspirando obras de Pablo Neruda e de outros poetas e músicos.

Também nessa mesma época saía às ruas Clara Campoamor Rodriguez (1888-1972). Política, republicana, liberal e defensora dos direitos da mulher, foi a principal impulsionadora do sufrágio universal na Espanha, conquistado em 1931. Aos 36 anos, torna-se em uma das poucas advogadas espanholas. Após sua morte, recebeu homenagens de várias instituições que defendiam os direitos das mulheres, e foi instituído um prêmio que leva o seu nome, reconhecendo anualmente personalidades ou grupos que atuam pela igualdade de gênero.

Depois de alcançar o direito ao voto, graças a Rodriguez, as espanholas ampliaram sua participação na esfera política. Federica Montseny Mañé (1905-1994) é uma delas. Sindicalista e anarquista, Mañé foi ministra durante a Segunda República Espanhola, sendo a primeira mulher a ocupar um cargo ministerial na Europa Ocidental. Desenvolveu planos que previa a criação de lugares destinados ao acolhimento infantil, restaurantes para grávidas e o primeiro projeto de Lei de Aborto na Espanha, aprovado em 1985. Assim como Pasionaria, foi exilada no fim da Guerra Civil. Só que em vez de ir para a Rússia, foi parar na França, onde foi perseguida por nazistas e franquistas.


Nazismo e franquismo ficaram – pelo menos em parte – no passado. Nascem outros paradigmas e as mulheres se unem para buscar respostas aos novos desafios. Legalização do aborto, prostituição, religião, violência de gênero e participação política são temas latentes, que geram importantes polêmicas e debates para a mulher de hoje. Entra então Esperanza Aguirre, militante do Partido Popular (PP) – da direita espanhola –, e a primeira presidente eleita da Comunidad Autônoma e Madrid. Nascida em 1952, também foi a primeira e única mulher a ostentar um cargo de presidência do Senado e de Ministra de Educação e Cultura do governo Espanhol.

Em 2004 Aguirre nomeou Cristina Alberdi Alonso, 66, como presidente do Conselho Assessor contra a Violência de Gênero de Madri. Advogada e política, Alonso também foi uma das importantes figuras femininas na história da Espanha. Foi a primeira mulher a formar parte do Partido Socialista Obrero Español (PSOE). Outra, do mesmo partido, e com destaque no cenário político é Leire Pajín, 35. Atual ministra de Saúde e Igualdade da Espanha, é a grande aposta do presidente José Luis Rodríguez Zapatero. Formou-se em sociologia e tornou-se a deputada mais jovem da história da democracia espanhola. Defensora dos ideais de esquerda e comprometida com os problemas de sua geração, já dizia antes mesmo de ingressar na vida política que seria “a força da mudança”. 

Além dela, outras caras, nomes, braços, ações, sonhos, desejos. Que não só no Dia Internacional das Mulheres, celebrado hoje, 8 de março,o legado dessas mulheres sirvam de exemplo. Sabemos que a mulher não é mais aquela definida pela feminista e filósofa Simone de Beauvoir, em seu livro o Segundo Sexo, como a Bela Adormecida no Bosque, a Cinderela e a Branca de Neve que recebe e suporta. No entanto, as princesas que se despiram do vestido ainda esperam mudanças mais profundas, até que a cultura esteja limpa e nua de qualquer vestígio machista que oculte o brilho e a cor de mulheres que querem ser para sempre vivas*.

*"Sempre-viva é o nome de uma flor muito bela e teimosa do cerrado que pode durar até cinquenta anos. Mesmo depois de seca ela permanece inteira, firme e com suas cores características, como se estivesse viva, por cerca de cinco anos. Além disso, caracteriza-se pela fácil dispersão e, por ironia, hoje encontra-se ameaçada de extinção. É uma flor capaz de se espalhar, de ser levada pelo vento. Livre e natural, cheia de vida". Trecho retirado do livro-reportagem Sempre vivas: histórias de sobrevivência, escrito por mim e por duas grandes amigas e jornalistas, Ana Luisa Barcelos e Mariana Celle.