sábado, 16 de outubro de 2010

Até breve

Resolvi arriscar um CD novo no carro. Tenho vários daqueles gravados há muito tempo, sem referência, e que eu não fazia a mínima ideia do conteúdo. Começou com Led, passou por Secos e Molhados, continuou com Pink Floyd e terminou com Yes. A última música do CD, a última que ouvi no Brasil, foi a Soon, composta por Jon Anderson, e uma das primeiras músicas que meu pai me apresentou do grupo. Liguei para ele e coloquei o celular perto do som, para que ele também pudesse ouvir. Obrigada, pai.

Soon
Yes
Composição: Jon Anderson

“Soon oh soon the light
Pass within and soothe the endless night
And waiting for you
Our reason to be here
Soon oh soon the time
All we move to gain will reach and calm
Our heart is open
Our reason to be here
Long ago, set into rhyme
Soon oh soon the light
Ours to shape for all time, ours the right
The sun will lead us
Our reason to be here
The sun will lead us
Our reason to be here”

De arrepiar

A porta fez um suave ruído e lentamente entrou um feixe de luz. Meu leve sono fez com que eu me despertasse. Era meu pai entrando no meu quarto, não muito de costume, às 8 horas de um sábado. Antes de questionar o motivo pelo qual meus sonhos de fim de semana estariam sendo interrompidos, aguardei que ele se manifestasse.

- De quem é esse DVD pirata do U2?
- É meu, pai.
- Não acredito que você comprou DVD pirata.

Retirou-se do meu quarto, fechei os olhos e, quando menos esperava, ele entrou novamente, cheio de CDs e DVDs nas mãos.

- Olha o que eu comprei, Carol.

Mostrou-me um deles. Olhei, mas, devido às circunstâncias de pós-despertar, não dei atenção. Mais uma vez reafirmou o seu posicionamento contrário à minha compra de um DVD pirata.

- Toma, esse DVD do U2 não vai ficar com os meus. Coloca nas suas coisas.

Já ia saindo do meu quarto, mas deu meia volta e mais dois passos estaria de frente para minha cama novamente.

- Carol, isso é uma verdadeira obra de arte.

Abriu o DVD e disse que mais tarde veríamos juntos.

- Fico até arrepiado!

Ergueu o braço e me mostrou os pelos para cima. Dessa vez ele realmente foi embora, mas me deixou em meio a um estágio intermediário de lucidez e sonolência, revivendo o passado e relembrando a nossa história. As janelas tremiam, a porta fazia uns ruídos estranhos e, às vezes, até assustadores pela ressonância do grave. Se eu não morasse em Belo Horizonte, acharia que era um terremoto. Enquanto minha mãe reclamava: “Thomaz, abaixa o som”, meu pai repetia: “Mata o velho”. A justificativa parecia óbvia: quem tem problema de coração não aguentaria ouvir a e intensidade da música. Não sei como os vizinhos não reclamavam. O som infiltrava pelas frestas, penetrava em todos os ambientes da nossa casa e, assim, propagava para o mundo.

A música entrou sem pedir licença nas nossas vidas. Não bateu na porta da nossa casa. Foi praticamente imposta, porém, bem-vinda. A sorte do meu pai foi que ninguém contestou. Aceitamos e gostamos. Cresci ao som de Pink Floyd, Deep Purple, Yes, Genesis, Peter Gabriel e Pat Metheny. O complexo de Édipo confirma. Quem realmente me conhece, percebe as minhas raízes paternas. Foi inevitável não despertar afinidade pelas mesmas músicas. E também foi impossível não fazer desses momentos os mais marcantes, principalmente nas nossas viagens de verão.

Subimos a Serra da Mantiqueira e descemos a Serra do Mar ouvindo Jethro Tull. O álbum era Living in the past. Definitivamente, não tínhamos chance. Nem adiantava sugerir um CD. Era assim em todas as viagens, inclusive, a demonstração dos pelos do braço arrepiados. Apesar de nos provocar risos com esse comportamento peculiar, meu pai era o próprio déspota esclarecido. Com alguns resquícios liberais, ele era, nas profundezas de seu conservadorismo, extremamente absolutista quando se tratava de escolher a trilha sonora para o carro.

O destino era Maresias. Com as músicas de Jethro Tull, parecia que estávamos viajando para a Escócia ou a cavalo para Constantinopla. As imagens que vinham à minha mente faziam referências aos primeiros séculos da Idade Média.

Fechava os olhos, encostava a cabeça na porta do carro e viajava na melodia. A flauta e o som transformavam-se em imagem e ganhavam vida. A paisagem da Mata Atlântica me levava para as montanhas europeias. Imaginava grandes muralhas, castelos, pontes, cavaleiros. Pensava como seria esse mundo que pertencia ao sexo masculino. A homens que seriam os donos da verdade, das terras e dos maiores feitos.

A harmonia da música não permitia que meus pensamentos fossem longe na desarmonia da Idade das Trevas. E logo, lembranças de guerras, peste negra, fome e exploração transformavam-se em um sentimento estranho, até nostálgico, de uma era que nem me pertencia. A música era capaz de me levar a outras dimensões, mas quando o carro parava e o som desligava, cessava, também, os meus pensamentos. Voltava à realidade, acordava dos sonhos e o silêncio pairava. A música começou a tocar novamente. Ainda era Jethro Tull, mas, a faixa 1 do CD se repetia. Foi quando me dei conta que não estava mais no passado e dentro de um carro. A porta começou a tremer e o volume do som foi aumentando.

A música soava na minha casa. O sentido era para o interior do meu quarto e não mais para Maresias. Acordei das memórias. Escutei a voz do meu pai, ofuscada e mesclada com a altura do som me chamando. Resolvi atender ao chamado. Abri os olhos, levantei da minha cama, saí do meu quarto ainda sonolenta e com vestes de dormir. Segui a onda sonora. Meu pai me convidou para sentar e assistir o DVD. Sentei e comecei a pensar como fui transportada para o presente. Não de uma forma imediata e brusca. Mas de um modo conexo, em que a música construiu uma ponte entre o tempo.

Os momentos se entrelaçaram e nós estávamos ouvindo o mesmo repertório, só que anos depois. Pensei: agora, só falta o meu pai mostrar me mostrar...(bem, você já sabe!). Foi em questão de segundos. Mas dessa vez, eu tinha um novo olhar. Percebi que não se tratava apenas de um comportamento repetitivo e previsível. Mas a atitude de um homem apaixonado pela música externalizando as suas mais profundas emoções. Chamou-me atenção para o seu braço.

- Viu como o seu pai fica emocionado? Olha os meus pelos arrepiados.

17 comentários:

Raquel disse...

Minha sobrinha querida,

Conhecendo bem seu Pai (meu irmão) foi impossivel segurar a emocão.
Vc sempre me surpreende com tanta sensibilidade.
Adorei.......
Bjs
Tia Raquelzinha.

Vivi disse...

Esse é o Biduuuuuuu!!!!!!!rsrsrs esse texto lindo e sesível tbm me fez reviver momentos maravilhosos ao lado de vcss!!! Nós indo p/ Lafaiete ou outros lugares e seu pai dedilhando no carro os sons mágicos e marcantes!!! Vcs fazem parte da minha hisória!! AMo vc, Bif!

Clarice de Pinho disse...

Fiquei fã do seu pai lendo isso, mesmo sem nunca ter falado com ele! hehehe
Não sabia que vc tinha tido referências musicais tão boas! =)

Fabiana Gonçalves disse...

Lindooooooo, também tenho o meu "bom gosto musical" graças ao meu pai.Como é bom....

Carol Jardim disse...

Ei Clá, vou dizer a ele que você ficou fã....rsrs...ele vai gostar...vai no show do Paul por mim?

Carol Jardim disse...

Não tem como esquecer dos batuques no volante, né Biff?? rsrs

Carol Jardim disse...

Você que é sensibilidade e emoção, Tia Raquelzinha... :)

Ana Paola disse...

Ei Pegone!! Adoro o jeito que vc escreve e descreve as coisas e pessoas. É realmente envolvente e me faz sentir parte do momento. É claro que eu não pude deixar de lebrar das vezes em que eu participei de uma cena dessas, com música alta, batuque no volante, na sala de música da casa antiga...ai que delícia lembrar disso.

Que seu primeiro mês de embarazamiento seja uma adaptação mágica!! Te amo! besitos

Osmar Fraga disse...

Seus textos fazem as janelinhas do msn piscando, indiferentes. Parabéns!

Carol Jardim disse...

Será mágico, Pegone, por que a vida é mágica..Você fazer parte da minha vida é mágico....Amo! :)

Carol Jardim disse...

Que bom que eu faço a diferença, Osmar...todos nós fazemos, com poucas ou muitas palavras...

Luciana e Luciano disse...

Q lindo durinus... (abreviei... rsrsr) Uma linda homenagem para o seu pai! Já vivi essa cena várias vezes com vocês. Como é marca da sua família essa cena do carro... saudades!!!!
Te amo!

Anônimo disse...

Carolzita, que legal o texto sobre o Thomaz! Descrição fidelíssima! Também conheço aqueles muitos decibéis, de um bom rock... Mas sabe que, na última vez que o encontrei, fui "aplicado" num Jorge Ben? Pois é, o homi tem feito boas concessões, mantendo o "arrepio"... Um grande beijo, Tio Duuuuuuu

Anônimo disse...

Carool, que lindo!! Até me emocionei.. hahaha
Espero que você esteja aproveitando muito ai!
Pode ter certeza que estou lendo todas as suas postagens!
beijoos, Amanda
ps: PAN PAN AMERICANO

Carol Jardim disse...

Ei Luluzinha (troquei as iniciais)...rsrs...que bom que você gostou; é o testemunho de uma pessoa que sempre esteve com a gente e realmente viveu os "pelos arrepiados". Pensava que era uma lembrança individual. É legal perceber que você, as meninas e muitas outras pessoas também se indentificam com esses momentos musicais da minha família. rs

Carol Jardim disse...

Tiooo Duuuuuuuuuuu...não é impressionante isso? De Black Sabbath para Jorge Ben Jor? Teve um dia que ele chegou em casa com a mamãe e o som do carro estava no talo. Dava para ouvir no bairro inteiro. Ele cantava "Ela não gosta mais de mim. Mas eu gosto dela mesmo assim..."..rsrs

Carol Jardim disse...

Manduska, que saudadeee... :) Acho que esse negócio de pan pan americano ainda não chegou aqui em Madri. Ainda bem..rsrs..já basta em Ouro Preto!! Inesquecível!!!