Em uma tarde de domingo, Manuel Yanez recordava sobre sua viuvez, um dos motivos pelo qual havia decidido transformar sua casa em pousada, erguida em um dos pontos mais nobres da cidade: em frente ao Palácio Real. Contava-me sua história de forma linear, exceto nas pausas em que dedicava seu olhar à sua esposa, emoldurada em um dos quadros da sala de estar que virou recepção.
Durante a nossa conversa, o espanhol que poderia ser meu avô, mas com espírito jovem e com pinta de galã, resgatou outra mulher de sua vida. Contou-me da época em que, ainda criança, acompanhava sua mãe até Cuatro Caminos – hoje, uma estação de metrô que fica perto da minha casa. Lá, buscavam comida em um dos quartéis instalados na cidade.
A Espanha estava em guerra, e Manuel me revelava suas lembranças de garoto como se toda sua vida tivesse como pano de fundo um conflito que deixou cicatrizes profundas, ainda em processo de cura no país.
A Guerra Civil Espanhola está representada no Guernica, a obra mais famosa do pintor espanhol Pablo Picasso e a principal atração do Museu Reina Sofia. Aquela que estudamos desde o colégio, que certamente mencionaremos para os nossos filhos, e que é alvo de muitos flashs. Sim, é permitido fotografar, respeitando alguns metros de distância.
O quadro representa um conflito entre nacionalistas e republicanos que começou em 1936, terminou em 1939, mas que continua gerando polêmica e influenciando vidas. Tanto é que, em 2005, partidários da extrema-direita picharam no muro do secretário do Partido Comunista da Espanha, Santiago Carillo, as seguintes frases: "Así empezó la guerra, y ganamos". "Carrilo, asesino, sabemos dónde vives". Devido ao seu impacto, a Guerra Civil Espanhola gerou cerca de 20 mil livros, volume literário equiparado ao da Segunda Guerra Mundial, e inspirou outras obras, como o Guernica.
O fascínio pela obra de Picasso – ou por qualquer grande obra – não se explica só pela estética. Por detrás das pinceladas cubistas de um dos principais pintores da Espanha tem todo um contexto que converte formas em memória, história e sensações. Em uma experiência que não se limita aos minutos em que se está frente a frente ao Guernica. Proporciona aquilo que talvez melhor defina a arte: a capacidade de ter extensão em nossas vidas, de transformar a nossa visão de mundo.
E o quadro de Picasso muda. Tem força. É potente como o bombardeio na cidade de Guernica, que destruiu a população basca que residia ali. O massacre, resistido por Manuel e por muitos outros espanhóis, é imortalizado na obra do espanhol. Com traços que rompem com a estética do perfeito, Picasso desconfigura uma realidade já destroçada. Retrata uma Espanha em pedaços, fragmentada pelas divergências políticas e pela destruição do país.
Digestão com café, muffin e jazz
Passada a Guerra, momento de reconstruir peça por peça. Todas as lembranças ficariam na memória da sociedade espanhola ou comporiam grandes salas de museu. O Reina Sofia, um dos principais museus de Madri, dispõe de salas exclusivas para o Guernica. Exibem todos os esboços de Picasso que o levaram à confecção do quadro.
Além da obra-prima do pintor, o Reina Sofia abriga coleções de outros importantes artistas espanhóis, como Salvador Dalí e Miró. E de internacionais, representados por Georges Braque, Francis Bacon e muitos, muitos outros.
O museu cobre o final do século XIX até a atualidade. Está localizado em um ponto privilegiado da cidade, em frente à Atocha – principal estação de Madri –, e perto do Paseo del Prado, uma das avenidas mais bonitas da cidade, um museu a céu aberto.
Depois da visita, não deixe de ir ao café-restaurante do Reina Sofia. Com decoração moderna, combinando com a arquitetura arrojada de uma das fachadas do museu, o espaço é uma ótima opção para digerir o banquete artístico com um bom café, muffin e jazz.